quarta-feira, 29 de julho de 2009

Está tudo escuro no andar de baixo.
Toco o corrimão de madeira fria, tateio com os pés o início da escada. Vou de encontro com o primeiro degrau. Cada passo é repleto de dúvidas.
À medida que vou chegando mais perto do andar de baixo, angústias me preenchem. Vou rememorando de maneira confusa e ininteligível o passado, algo que não está claro, que confunde. Muitos choros de incompreensão, muitos sintomas de águas passadas ressurgindo neste corpo de agora.
Há sons neste andar, sons ocos, surdos. Faço um esforço para tentar distingui-los, mas cada vez que estou perto de entender uma palavra, o som foge e faz-se o silêncio.
Diante da escuridão dos cômodos, consigo imaginar olhos invisíveis a me olharem, a observarem tamanha confusão mental.
Talvez exista um cômodo claro, com um sofá confortável, um tapete quente, onde eu possa assistir esse passado.. ou até mesmo ler, mas nunca reviver.
Permaneço alguns minutos nesse breu total, mas algo na escada me atrai de volta. Talvez seja a luz do cômodo de cima, a clareza de todos os detalhes.. talvez seja um saber instintivo de que é ali que devo estar. Embora ainda me encontre muito ligada com este andar, é o de cima que devo estar.
Começo a subir lentamente, mas não consigo me demorar nessa subida. De repente me vejo no corredor de cima. As paredes estão mais quentes, o chão mais firme. Ouço vozes, muitas vozes. Vejo cores.
Neste andar, também há um cômodo claro. Ele me atrai. É um cômodo aconchegante, que me envolve em muito amor, muito calor, me protege deste passado, embora não o compreenda.
Não há quem compreenda.
Deito num sofá grande, afundo minha cabeça numa larga almofada, cubro-me com um enorme e macio endredon. Adormeço. Sonho com uma mistura desses dois andares.

Com o tempo, esse andar de baixo vai virando porão.
Mais um tempo, e este andar de agora vira sótão.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Quatro

um par
um estalar de dedos,
mas, também, muito para contar

uma história
um início
um prato cheio de memória

um livro
um álbum
algumas folhas de papel

quatro

três

dois

um
o antes e o agora.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

colo macio

Estava encolhida,
recém-nascida,
não sabia ao certo o que fazer.
Eu não via nada,
apenas chorava
em braços quentes a me envolver.
Apesar da cegueira,
apesar da distância repentina,
sentia-me no lugar certo,
perto de onde queria estar.
De seu ventre macio,
sentia as pulsações,
o sangue a correr,
seu corpo retornando a um só.
De minha antiga morada
por maravilhosos 9 meses,
parti para este gigante mundo.
O colo me imbuia de forças
para abrir os olhos.
O calor de sua pele
enriquecia as células
de tão pequeno corpo.
Apesar de todos cuidados físicos,
o cuidado maior não se via,
apenas sentia envolver-me,
como manta de amor,
com sabor doce
de algo impossível de traduzir em palavras.
Esse cobertor invisível aos olhos carnais,
que acrescenta vitalidade,
que desenvolve o íntimo do ser,
que resiste à maior de todas as distâncias,
persiste em qualquer circunstância...
Não me atrevo a descrever.
Sei que um dia também serei fonte desta manta.
Só o serei, pois um dia a recebi.

àquela que me trouxe aqui

quarta-feira, 8 de julho de 2009

poema liberto da caixa

Nasci no escuro
mudo, miúdo, mundo minúsculo

Eu, egoísta, transbordei para dentro de mim
preso à escuridão do meu umbigo sujo

Sofri as dores de ver-me amarrado a mim mesmo
Foi a espiar a luz, que horizontalmente me esparramei

Uma fresta se abre, respiro ar puro
Vejo luz do outro lado, ouço vozes a chamar

Quero experimentar essa liberdade
ser declamado em praça pública

Quero ser levado pelo vento
quero ser grafado em novos papéis

Quero fazer parte de um livro
quero ter um nome

Ser o motivo de uma dança
crescer junto a uma nota musical

embalado em ondas sonoras
estar junto ao corpo que balança

Eu, poema que sou

poema conjunto:
Cauê e Rosana

sexta-feira, 3 de julho de 2009

tempo assim

O tempo não dá tempo
sai porta afora e não volta,
caminha em linha reta,
engole planos, mas os vomita.
Constrói e desmorona.
Amadurece e envelhece.
Tempo amigo, tempo perigo.
Tempo perdido, tempo achado.
Arranja-se tempo,
dá-se tempo ao tempo.
Dança-se tempo.

O tempo pode olhar pra trás,
mas não chora o leite derramado,
não há tempo mimado.
Tempo florido, tempoestade.
Tempo corre, magro, gordo,
escorre pela janela,
que abre, mas fecha.
Tempo desperto,
repentinamente pontual.
No ponto não permanece, transcorre.
Com asas sempre abertas, voa.

Tempo que vale a pena,
tempo sempre em cena,
tempo relativo, tempo dogmático.
Tempo que não se entende,
tempo que diz tudo.
Tempo que esclarece,
tempo que escurece.
Tempo, via de mão única
sem tráfego, sem fôlego.
Tempo, tempo, tempo.
Vento vento, vento